Por Eduardo Dornelas*
É fato conhecido que o atual sistema tributário brasileiro é extremamente complexo em suas diversas regras e formas de incidência e que tal complexidade é penosa à economia brasileira. Não à toa, as ineficiências causadas por sistemas tributários complexos são amplamente evidenciadas pela literatura econômica. Dois exemplos são ilustrativos.
Abeler e Jager (2015) encontram evidências de que as pessoas tendem a responder de forma menos intensa à introdução de incentivos em sistemas complexos de tributação ante sistemas mais simples. Isso implica que ferramentas como sobretaxação ou subsídios podem se tornar pouco eficazes em sistemas tributários cada vez mais complexos, limitando as ferramentas disponíveis para os formuladores de políticas públicas.
Para além da perda de eficácia de políticas públicas, o caos tributário também inibe investimentos. Lawless (2012), utilizando-se de modelos econométricos, demonstra que um sistema tributário complexo está associado a menores níveis de investimento externo direto em um país.
O Brasil certamente sofre desses e de uma série de outros efeitos negativos derivados de seu caótico sistema tributário. Daí a importância da Reforma Tributária ensejada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2019 e regulada pelo atual Projeto de Lei (PL) nº 68/2023. Urge trazer transparência e simplicidade quanto à aplicação de impostos no país.
Concebido no arcabouço de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), forma de cobrança utilizada em diversos países e considerada como a mais eficiente, a Reforma Tributária acabará com diversos impostos federais e estaduais. Os impostos serão congregados em apenas dois: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de âmbito federal, e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de âmbito estadual/municipal (BRASIL, s.d.).
Um ponto de destaque é a manutenção da alíquota de imposto média da economia. Considerando que o objetivo da Reforma Tributária é tornar o processo de cobrança mais transparente, mas sem alterar o volume de impostos pagos, para que não haja aumento ou diminuição da proporção de impostos pagos em relação ao produto econômico gerado no país o IVA terá uma alíquota média fixa a ser decidida periodicamente pelo Poder Legislativo. Com isso, caso um setor seja isento de tributação, os demais setores deverão ter suas alíquotas aumentadas, de forma que a média ponderada das alíquotas dos diversos setores da economia coincidam com a alíquota média fixa.
Em qualquer país, discutir um novo arcabouço tributário é tarefa complexa e morosa, com impactos significantes a longo prazo devido à alteração da forma de incentivo dos agentes econômicos. No Brasil, a existência de uma alíquota média fixa torna o debate ainda mais difícil, considerando que isentar setores importantes da economia - como aqueles relacionados à cesta básica da população - implica aumentar a alíquota aplicada nos demais setores.
Visando tentar simplificar as discussões e contribuir com a redução do custo de vida principalmente das famílias mais carentes, há a ideia de criar um mecanismo de cashback em que o imposto pago na compra de determinados produtos são devolvidos às famílias de menor renda. Na prática, o modelo de cashback visa a oferecer uma isenção tributária seletiva para famílias de baixa renda para determinados produtos da cesta básica (não isentos), sem necessitar o rebalanceamento de alíquotas dos demais setores da economia.
Dentre as vantagens desse modelo, pode-se elencar: (i) o menor impacto fiscal ante uma isenção tributária total do produto; (ii) possibilidade de administrar o público-alvo do benefício, por exemplo, deixando fora do reembolso famílias de mais alta renda; e, como já dito, (iii) não necessitar rebalancear as alíquotas de outros setores.
O modelo de cashback é uma boa ideia, mas sua forma de implementação é crucial para que não vire uma prática ruim.
Um primeiro ponto de reflexão, por exemplo, é como devolver o imposto pago para um grupo específico da sociedade. Uma ideia natural é devolver o valor utilizando o programa Bolsa Família, que já é implementado para famílias de baixa renda cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), banco de dados que congrega informações como endereço, escolaridade, situação de trabalho e renda de famílias de baixa renda (BRASIL, 2024). Além da facilidade do CadÚnico, utilizar o Bolsa Família também economizaria custos administrativos do cashback.
Por outro lado, auditorias no Programa Bolsa Família indicam que existem diversas famílias beneficiadas que não cumprem os requisitos do programa, o que, claramente, comprometeria a qualidade e eficiência do cashback. Conforme o Acórdão 1661/2024 – Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU, 2024), datado de agosto de 2024, mesmo com esforços do Governo Federal no último ano para regularizar os beneficiários do programa, ainda existiriam cerca de 2,2 milhões de famílias recebendo o benefício indevidamente. De acordo com o documento, o principal fator que afeta a qualidade da implementação do programa é a própria qualidade do CadÚnico. Nesse aspecto, conforme auditoria do TCU realizada em 2023 no sistema, foram encontradas divergências entre a renda declarada e efetivamente observada em 40,3% das famílias, além de que 33,4% das famílias apresentavam composição familiar diferente da declarada (TCU, 2023).
Um segundo ponto de reflexão é sobre a abrangência do cashback e seu real efeito sobre o consumo. Conforme as regras do PL 68/2024, o cashback estaria disponível para as famílias com até meio salário-mínimo per capita, grupo que representa cerca de 30% da população. Tal valor parece significativo, mas deve ser contrastado com a desigualdade no consumo no Brasil. Tome-se o exemplo da carne: a partir de dados apresentados em Domingues e Magalhães (2024) utilizando dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (POF/IBGE), é possível perceber que o grupo beneficiado com o cashback corresponderia a apenas 15,9% da demanda por carnes no país. Ou seja, eventual política de cashback seria importante em termos de acesso ao consumo de carne por priorizar a população mais carente, mas seus efeitos em termos de consumo seriam limitados dada a desigualdade existente no acesso.
E qual seria o real efeito do cashback sobre o consumo das famílias beneficiadas? A partir da análise das elasticidades-renda e preço do consumo de carnes, é possível comparar o efeito gerado pelo cashback ante o consumo induzido pela isenção tributária. A elasticidade de renda é o indicador econômico que possibilita estimar quanto o consumo de certo produto se altera de acordo com a variação de 1% da renda do agente. Já a elasticidade preço da demanda do produto é o indicador econômico que possibilita estimar quanto o consumo de certo produto se altera de acordo com a variação de 1% do preço do produto analisado.
Enquanto o cashback gera um efeito-renda (isto é, um aumento da renda disponível para consumo, devido à devolução do imposto pago às famílias), a isenção geraria um efeito sobre a relação do preço da carne ante os demais itens de consumo das famílias (o preço da carne se tornaria mais barato ante outros itens, assumindo que todo o imposto isento seja repassado no preço do produto).
De acordo com Domingues e Magalhães (2024), a diferença entre o cashback com e sem carnes seria em torno de 0,6% do gasto total das famílias. Assumindo, por simplificação e conservadorismo, que as famílias gastam toda a renda que recebem, então o efeito sobre a renda das famílias beneficiadas caso as carnes fossem incluídas no cashback seria de um aumento na renda familiar de 0,6%. Partindo-se das elasticidades-renda médias de carnes para a população brasileira calculada em Neto e Junior (2023) e multiplicando-as pelo aumento da renda das famílias com o cashback das carnes, aumentar-se-ia o consumo de carnes em, no máximo, 0,62%, sendo este o valor referente à variação no consumo para carnes de aves (Quadro 1).
Quadro 1: Variação do consumo de carnes com cashback
Elasticidade Renda (Média) | Variação consumo por 0,6% de aumento de renda | |
Bovino | 0,79 | 0,47% |
Suíno | 0,94 | 0,56% |
Aves | 1,03 | 0,62% |
Fonte: Neto e Junior (2023) e Autor.
Por outro lado, a redução para alíquota zero dos impostos para carnes levaria a uma redução de cerca de 3% do valor assumindo repasse completo ao consumidor, considerando a diferença aproximada entre o imposto atualmente incidente nesses produtos hoje e a alíquota isenta após a Reforma Tributária. Novamente, utilizando estimativas de Neto e Junior (2023), mas para as elasticidades-preço da demanda por carnes , multiplicam-se tais valores pela redução aproximada do imposto. O resultado seria um incremento de consumo de até 3,39% (valor para carne suína – Quadro 2).
Quadro 2: Variação do consumo considerando a isenção de carnes
Elasticidade Preço da Demanda (Média) | Variação consumo por 3% de redução de preço | |
Bovino | 0,88 | 2,64% |
Suíno | 1,13 | 3,39% |
Aves | 1,03 | 3,09% |
Fonte: Neto e Junior (2023) e Autor.
Logo, a isenção tributária de carnes parece estimular mais o consumo de carnes pela população, em média, do que a implementação de cashback. Assumindo que as elasticidades-renda e preço do consumo de carnes pelas classes mais pobres tendem a ser maiores (demanda mais elástica) ante as classes com maior nível de renda, então os resultados encontrados anteriormente – calculados com elasticidades médias para toda a população – tendem a ser ainda maiores na prática para as famílias de baixa renda.
Em resumo, a implementação do cashback para famílias de baixa renda é uma ideia interessante para contribuir com a redução do custo de vida, especialmente no que se refere ao acesso a alimentos. No entanto, sua implementação deve ser cuidadosamente planejada, levando em consideração questões como a seleção e possíveis ineficiências de custo e gestão da base de beneficiários. Além disso, quando se analisa possíveis alternativas, observa-se que alternativas como a isenção tributária teriam efeito mais significativo em termos de aumento do consumo de carne da população pobre. Os exercícios apresentados tomando a carne como um exemplo ilustrativo evidenciam a complexidade e a importância das decisões envolvidas na Reforma Tributária.
*As opiniões emitidas neste blog são de exclusiva e inteira responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista da GO Associados.
Referências:
ABELER, J.; JAGER, S. Complex Tax Incentives. American Economic Journal: Economic Policy, v.7, n.3, p. 1–28, 2015. DOI:10.1257/pol.20130137
BRASIL. Cadastro Único: Conhecer para incluir. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/cadastro-unico. Acesso em: 31/10/2024.
BRASIL. Reforma Tributária – Perguntas e Respostas. Assessoria Especial de Comunicação Social, Ministério da Fazenda, s.d. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/perguntaserespostasreformatributria. Acesso em: 31/10/2024.
DOMINGUES, E. P.; MAGALHÃES, A. S. Impactos macroeconômicos, setoriais e distributivos da reforma tributária: benefícios e o que se perde com as alíquotas diferenciadas. UFMG - Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional - Núcleo de Estudos em Modelagem Econômica e Ambiental Aplicada, agosto 2024. Disponívelem:https://pesquisas.face.ufmg.br/nemea/2024/08/07/impactos-macroeconomicos-setoriais-e-distributivos-da-reforma-tributaria-beneficios-e-o-que-se-perde-com-as-aliquotas-diferenciadas/. Acesso em: 23/09/2024
LAWLESS, M. Do Complicated Tax Systems Prevent Foreign Direct Investment? Economica, v.80, n.317, p.1–22, 2012. DOI:10.1111/j.1468-0335.2012.00934.x
NETO, A. A.; JUNIOR, G. C. Demanda por carnes no Brasil: Uma análise do consumo das famílias brasileiras entre 1970 e 2022. Economia & Região, v.11, n.3, p.405-423. Londrina (PR), 2023
TCU. Acórdão 1661/2024 - Plenário, 2024. Tribunal de Contas da União, 2024. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/KEY%253AACORDAO-COMPLETO-2660932/DTRELEVANCIA%2520desc%252C%2520NUMACORDAOINT%2520desc/0. Acesso em: 31/10/2024.
TCU. Processo TC 000.888/2023-0. Tributal de Contas da União, 2023. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/auditoria-aponta-falhas-no-cadunico-com-prejuizo-potencial-de-r-34-bilhoes-ate-dezembro.htm. Acesso em: 31/10/2024.
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